sábado, 27 de março de 2010

Saldo do Primeiro Mês

No último dia 19, completamos um mês em Moçambique. É incrível como passou rápido. Infelizmente, perdemos nossas duas primeiras semanas presos em Maputo, tentando resolver a questão do roubo do passaporte do Gabriel.

O lado bom foi que pudemos conhecer a capital do país e entender melhor como funciona Moçambique e o povo daqui, fizemos amigos pela comunidade, descobrimos projetos interessantes na região e saímos daqui entendendo melhor qual a postura que se deve ter ao lidar com os moçambicanos e com as questões de desenvolvimento. Fora que tivemos tempo suficiente para convencer a ADPP (Ajuda do Desenvolvimento de Povo para Povo, a organização para a qual trabalhamos aqui) a nos mandar ao nosso projeto de avião, e não de ônibus, que demoraria duas semanas para chegar a Bilibiza.

Para quem não acompanha o blog, Bilibiza era a África que todo mundo tem no imaginário: uma pequena aldeia, sem eletricidade ou água encanada, as casas todas feitas de barro eram destruídas quando havia chuva forte e quase ninguém sabia falar português – só se ouvia Emakhua, a língua predominante na região norte do país. Encontrar vegetais, legumes, frutas era muito difícil e nossa alimentação ficava restrita a, principalmente, arroz, feijão, matapa (folha do feijão cozida) e chima (farinha de milho + água).

Como somos meio loucos, consideramos Bilibiza o lugar perfeito, até porque havia um grupo de Combatentes da Pobreza, pessoas que implementam diversas atividades junto à comunidade, como as que queremos fazer. Estávamos trabalhando com eles nas duas semanas que ficamos por lá: arrumamos o orçamento para conseguir o dinheiro dos patrocinadores e começar os projetos e fomos às escolas na aldeia para chamar a população para participar das atividades.

A escolinha de Bilibiza estava parada porque o líder da comunidade local queria cobrar dinheiro para conversar com as crianças e chamá-las para as aulas. Era cerca de um real por criança com que ele falasse, então nós e os outros voluntários ficamos em um impasse: se aceitamos as condições e damos o dinheiro, toda vez que quiséssemos implementar uma atividade nova e falássemos com ele, ele pediria mais dinheiro, mesmo que a atividade fosse para o bem das pessoas da aldeia. Conseguimos um intermediário e semana passada as aulas voltaram na escolinha, mas já não estávamos lá para ajudar.

Como já expliquei, tivemos que sair do projeto em Bilibiza porque o Gabriel ficou com uma reação alérgica e crise de asma forte lá. Desde a primeira noite, ele não conseguia dormir, respirava mal, não podia falar direito e não podia ir a nenhum cômodo da casa que não fosse a sala de estar, o único com janelas e por isso mais arejado, menos úmido e sem mofo. Trabalhar em Bilibiza era impossível para ele e até mesmo perigoso, porque o hospital mais próximo ficava a cerca de quatro horas dali, então decidimos trocar de projeto após duas semanas.

Voltamos a Maputo há alguns dias e estamos resolvendo para qual projeto vamos agora. Changalane, a 80 km da capital nacional, parece que vai ser a eleita. Lá há uma universidade para formar professores e Combatentes da Pobreza, os mesmos com que trabalhamos em Bilibiza. Os voluntários que ficaram lá sempre falam muito bem porque você ajuda na formação dos Combatentes e trabalha com eles direto com as comunidades. Quarta que vem vamos visitar a universidade e conversar com a diretora já sobre nossas atividades lá.

Com todos os imprevistos e mudanças, ainda não tivemos tempo de implemetar o dinheiro doado por amigos e familiares em fevereiro, quando passamos no Brasil. Queremos ter um tempo para conhecer a região onde vamos trabalhar primeiro para ter certeza sobre as necessidades do local e garantir que ninguém use um projeto nosso em benefício próprio. Em Bilibiza, por exemplo, dois voluntários construíram um poço e o líder local começou a cobrar para as pessoas tirarem água.

Assim que chegarmos a Changalane, vamos à comunidade para investigar as condições de vida lá e a partir daí montaremos os projetos para começar a implementar os 750 dólares arrecadados na pizzada. Já aviso que isso deve demorar algum tempo, mas vamos informando a todos por aqui.

E para aqueles que tem preguiça de ler e gostariam de ver mais imagens, aviso que Moçambique é obviamente um país sem muita tecnologia e a internet daqui é lenta demais para postarmos muitas fotos sempre. Por isso, duas ou três fotos por texto é o máximo que conseguimos e ainda demoramos uma hora e meia para fazer isso. Hoje não vai dar porque está em um dia ruim

quinta-feira, 25 de março de 2010

O camaleão no meio do caminho

Na nossa última ida à vila para comprar pão e trocar uma das capulanas que estava manchada, levamos a máquina fotográfica. Em algum lugar entre a entrada e o centro, Gabriel me chamou atenção ao animal no meio da estrada. Era um camaleão verde brilhante, cada olho apontando para um lado, atravessando a rua lentamente.



O camaleão colocava uma pata à frente, puxava para trás, para frente de novo, para trás e finalmente concluía um passo. Começamos a tirar muitas e muitas fotos, observados por um grupo de locais sentados embaixo de uma árvore. Para variar um pouco, eles riam de nós e de nossa surpresa com o bicho.



De repente, num momento de distração minha por causa de algumas crianças correndo em nossa direção a gritar “kunha”, veio uma bicicleta e atropelou nosso mais novo amigo camaleão. O grupo que nos assistia soltou uma lamentação também e o bicho começou a andar desgovernado e mudar de cor.

Um cabrito se aproximou e, ao cheirar o réptil, fez todo mundo virar o rosto. Falei que não queria ver aquilo e saí andando. Mas o cabrito foi embora e nos deixamos ficar, torcendo e querendo que o camaleão ficasse bem, que só estivesse ferido e se curasse.

Ao contrário, nosso amigo foi mudando de cor, o verde deu lugar a um cinza esbranquiçado. Cambaleando, lutando para sair da estrada, o camaleão se rendeu e perdeu suas últimas forças. E nós seguimos nosso caminho ao centro, sem fotos da tragédia e tentando esquecer do acidente.



Obs: Na versão do Gabriel, o cabrito cheirou o camaleão antes da bicicleta chegar e atropelar o bicho. Eu discordo. E como sou eu quem está escrevendo, a versão publicada é a minha.

terça-feira, 23 de março de 2010

As indescritíveis andanças por Bilibiza

O centro de Bilibiza fica a 20 minutos andando da casa dos voluntários. Como centro, entenda-se região onde alguns locais vendem pães e poucos tipos de legumes e há algumas barraquinhas e lojinhas de comércio.

Com dez minutos de caminhada, as primeiras casas de barro surgiam na estrada esburacada e sem asfalto. O mato acompanhava durante todo o caminho e às vezes tampava a vista do horizonte igual aos cenários de documentários nas savanas.



O sol, o calor, a umidade sempre nos obrigavam a ir à vila no fim da tarde, quando os mosquitos partiam ao ataque, ou então de manhã bem cedinho.

As primeiras pessoas nos avistavam. Se eram adultos, sempre nos saudavam com um "Salama, salama!" e bem raramente diziam "Bom dia". Se eram crianças, elas vinham correndo de longe, acenando e gritando "Kunha, kunha, kunha!", o que significa "branco". Era só acenarmos de volta e a felicidade delas estava feita. Uma vez, teve um grupo de meninas que nos seguia dançando e cantando em Emakhua. Nunca descobrimos o que diziam.

Quando a máquina fotográfica nos acompanhava, sempre pediam para tirarmos foto deles. Na primeira vez, não conseguíamos entender se brigavam com a gente ou nos chamavam. Enfim um local passou e explicou que queriam ser fotografados. Faziam poses, puxavam as crianças, mostravam os instrumentos de trabalho. Até que uma das locais pediu cinco meticais para sair na foto e a brincadeira acabou para nós.



No lugar onde vendiam pão a um metical cada, um dos meninos vendedores sempre ficava falando a língua local e rindo porque nós não entendíamos. Qualquer coisa era motivo para rirem aliás, tamanho o choque cultural de pequenos costumes nossos.

A parte ruim é que toda vez algum bêbado ou alguma criança ou uma pessoa comum nos seguia por algum tempo, dizendo "ikemelê" ou "estou a pedir". E você pergunta alto "Estou a pedir o quê?". E os risos em resposta mostram que pedem qualquer coisa, para qualquer um, porque precisam, de verdade, de tudo.

Indo embora

Como eu expliquei no post passado, o Gabriel está com uma reação alérgica ao ar ruim da casa e suas conseqüências e por isso teremos que mudar de projeto. A eletricidade aqui funciona só cerca de sete horas por dia, e quando o diretor da escola está fora ela quase não funciona porque não ligam o gerador por causa de preguiça. Como não há socorro perto caso a alergia vire uma crise feia e não podemos contar com eletricidade para inalação, vamos sair daqui.

Fomos a um médico em Pemba, que trata nosso chefe aqui do projeto. Ele fez exame de sangue em nós dois, o que apontou negativo para malária e mostrou a alergia do Gabriel. O conselho dele foi que, caso não conseguirmos melhorar o ambiente da casa, coisa que sabemos que não vai acontecer, devemos mudar de cidade mesmo.

Não sabemos para onde vamos, nem o que vamos fazer lá. Só sabemos que precisa ser uma casa mais nova de preferência, com eletricidade e/ou água corrente (porque os baldes espalhados pela casa favorecem a umidade e os mofos). Se o clima for menos úmido que o daqui também ajuda já.

Nessas condições, conhecemos a casa de Maputo, de Changalane (uma universidade da ADPP, onde formam os professores da EPF e os combatentes da pobreza) e de Nacala. Nicolau, o responsável por todos os DIs de Moçambique diz que todos os projetos do país estão cheios e não sabe o que fazer com a gente. Eu tenho confiança que se o pressionarmos um pouquinho, ele arranja um lugar para ficarmos.

Nossa esperança é encontrar outros combatentes em outra província e trabalharmos com eles, já que estávamos gostando da idéia de ajudar o trabalho que estavam começando.
Por ora, ficamos aqui em Bilibiza mesmo, dormindo na sala que é mais fresca e ventilada, a esperar por uma resposta, uma luz, uma solução. Mais notícias sobre isso em breve.

O trabalho em Bilibiza

Tivemos a sorte de encontrar uma função para nós logo no primeiro dia aqui. Hassira explicou que há um grupo de estudantes do curso de Combatentes da Pobreza de Maputo implementando atividades nas comunidades próximas à sede de Bilibiza, como cursos para ensinar carpintaria e corte e costura; construção de latrinas, campos e quadras esportivas, escolinhas; criando hortas nas escolas; e montando clubes para ensinar sobre saúde e cultura.

Os quatro são um pouco perdidos, já estão há um mês aqui, mas ainda não conseguiram que a sede em Maputo aprovasse o orçamento, bancado por uma empresa espanhola, para que se iniciem as construções e atividades. A primeira coisa que fizemos foi ajudá-los com o orçamento e explicar por que se deve saber o tamanho de um prédio antes de comprar o material a ser usado. O que parece básico, óbvio para nós, nem sempre é para eles, como dá para ver.

Além disso, Hassira explicou que poderíamos trabalhar também na escolinha, de que o casal Federico e Sarah deveria estar cuidando. Porém, para que as crianças venham à escolinha, o chefe da comunidade deve avisar à população sobre isso. E aparentemente o mediador entre os voluntários e o chefe pediu dinheiro para eles, caso contrário, o líder dificilmente daria o aviso. Federico se irritou com isso e agora a escolinha está parada novamente.

Na EPF em si, não há mais espaços para formadores (os professores que treinam os alunos), mas sempre que quisermos, devemos conversar com o coordenador pedagógico e podemos dar cursos extracurriculares e criar outras atividades além da sala de aula.
A primeira semana, porém, foi quase toda usada para tentar cuidar da saúde do Gabriel.

A casa dos voluntários é sempre fechada por causa dos animais e insetos que podem aparecer e há baldes de água espalhados por não haver água corrente. Com isso, a umidade é muito alta e aparecem mofos, ácaros, etc, que atacam a alergia do Gabriel e fazem com que a respiração fique difícil. Por isso, provavelmente seremos obrigados a mudar de projeto/província. Mas isso é assunto pra outro post.

Chegando no fim do fim do mundo

Levamos 17 dias presos em Maputo, então já dava para ter uma idéia de que chegar à Bilibiza não seria uma tarefa muito fácil.

Começou com a ida ao aeroporto. Moisés, o motorista da ADPP, deveria estar em casa para nos buscar às 8h30, já que nosso vôo era às 11h e o trânsito em Maputo chega a deixar o de São Paulo com certa inveja pela manhã. Acordamos uma hora antes, tomamos café (vulgo pão com badia), terminamos as malas, Gabriel fez a barba, checamos o quarto três vezes e sentamos para esperar.

Com mais de uma hora de atraso, Moisés chega tomando refrigerante e comendo badia, bem como seus amigos que pegavam boleia com ele. Por saber que estava atrasado e temer que perdêssemos o vôo, o motorista cortava caminho por dentro – coisa que já é complicada em São Paulo, fica ainda mais difícil nas ruas não asfaltadas, sem sentido e com habitações nada organizadas. Pensei que o carro ia encalhar ou tombar umas cinco vezes.
Chegamos ao aeroporto a tempo de fazer o check-in e a LAM nos fez pagar um absurdo de quase quatro dólares por quilo em excesso na bagagem. Depois, uma mulher nos fez abrir uma das malas por causa de alguns potes de tinta guache para as crianças.

Embarcamos, enfim, a pé, atravessando pelo meio da pista de decolagem. Nossos assentos eram os últimos do avião, ao lado do lugar onde guardavam as garrafas de água embaixo dos bancos. O vôo seria de duas horas e meia, sem televisão, mas com uma paisagem cheia de praias de areia branca e mares coloridos.

Hassira, o líder do nosso projeto em Bilibiza, veio nos buscar no aeroporto de Pemba e nos levou à casa da ADPP. Observando a cidade por dez minutos, dava para perceber por que Cabo Delgado é considerada uma das províncias menos desenvolvidas de Moçambique. Casas de barro espalhadas pela cidade, muitas vias sem asfalto, feiras bagunçadas ao ar livre. Por onde passávamos, atraíamos atenção pela nossa cor de pele, raramente vista na região.

De Pemba à Bilibiza, foram cerca de quatro interessantes horas, por assim dizer, na traseira de um Land Rover off-road (acho que foi isso que o Gabriel falou). O tempo todo de estrada era mato e mais mato, ou vilarejozinhos de casas de barro, do tipo que você pensa que só existem mesmo em filmes e documentários do Discovery Channel sobre o subdesenvolvimento.

Em algum momento da viagem, comecei a desejar que nunca chegasse. Não queria ver Bilibiza, não queria conhecer a mesma realidade onde moraria por seis meses. Mas Bilibiza chegou, já na escuridão de uma noite sem eletricidade. O motorista desceu e olhares curiosos de crianças diziam “kunha, kunha!” silenciosamente. Arrisquei um “Salama!” que aprendi no caminho, mas a resposta veio muito complicada e minha cara de interrogação provocou risos nas meninas.

Nossa casa aqui era bonita e ainda tinha eletricidade. Conhecemos os outros quatro moradores daqui – um casal formado pelo argentino Federico e a italiana Sarah, a japonesa Nozomi e o italiano também Federico. Tive meu primeiro banho de canequinha desde a infância e a noite, sob a proteção de um mosquiteiro, foi uma das mais difíceis que experimentei, pelo calor, pela umidade, pela ansiedade da chegada.

Atualizando...

Bilibiza tinha, sim, internet, mas era a pior conexão que eu já experimentei na minha vida. Com isso, fiquei com posts acumulados por quase duas semanas.

Por isso, vou postar tudo de uma vez, já que já estão velhos mesmo.

E só pra constar, estamos de volta em Maputo.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Humor negro

17 dias atrás
- Como assim você não tá encontrando o passaporte?
- Não tá no bolso com os outros, só encontrei o velho e o meu novo.
- Mas tem que tá, já procurou direito em tudo?
- Já, mas não encontrei. Vê se você encontra....

16 dias
- É Zé, agora tem que esperar.
- Ah, isso é rapidinho. A Magna fez o dela rapidinho.
- É eu fui lá e falei com o Seu Wilson e no mesmo dia fico pronto, tive que pagar quarenta dólares, mas é rapidinho. É o verdinho datilografado mesmo. Rapidinho. Semana que vem você já tá em Bilibiza.
- Único problema é que o Wilson enrola pra caramba. Quando fui lá o homem só falava e se atrapalhava todo.

15 dias
- Ihh bocó, acabei de ver que o seu passaporte vai ter que ser o novo porque eles estão mudando de sistema. O antigo não faz mais.
- E desde quando é o novo? O Zé e a Magna me falaram diferente...
- Então, a partir de amanhã começa o novo sistema.

14 dias
- Podem se sentar, querem uma água? Então digam o que aconteceu.
- Passaporte sumiu. A gente tem certeza que foi na saída do ônibus que o meu passaporte foi roubado ou fico no ônibus mesmo. Isso porque a gente passo da fronteira e depois eu dei o passaporte pra ela guardar e quando a gente chego em casa não tava lá. A saída do ônibus foi uma confusão e todo mundo tava pegando nas nossas coisas...
- É, e eu chequei o ônibus também e já entramos em contato com a companhia pra vê se eles encontram. Uma tal de Brigida tá encarregada pela busca. Pelo menos foi passaporte novo que sumiu, já penso se fosse o velho com o visto pros EUA?
- Poxa....que pena! No dia em que chegaram? Tem que ter muito cuidado. Passaporte é roubado toda hora aqui. Enfim, vão ter que pagar no banco a taxa de emissão de um novo, fazer BO e voltar aqui e hoje mesmo já sai.
- Sério? Nossa pensei que ia demorar bem mais. Brigadão, Seu Wilson! Até daqui a pouco.

13 dias e meio
- Seu Armênio, como o senhor está? Já são 14 horas, o documento tá pronto.
- Já está pronto sim. Pode conferir?
- Tirando a idade tá tudo certo. Muito obrigado pela ajuda Seu Armênio.
- É a idade no documento não tem problema, mas só diplomata não paga...
- Como?
- Diplomata não paga, mas como ainda não são...
- Como?
- Vocês não são diplomatas e só diplomatas que não pagam.
- tsc tsc....

12 dias
- E ae Gabriel, já tá pronto o passaporte?
- Você acha? Seu Wilson falo que ia fazer ontem mesmo, cheguei lá e o cara tava uma fera porque não sabia mexer no sistema. Pediu pra voltar amanhã.
- E a passagem?
- Não conhece o Nicolau? Danilo, o cara enrola muito. Continua falando que tem que ir de mochimbombo*. Vamos esperar o passaporte primeiro.

11 dias
- Bocó, será que já tá pronto? Ele falou no email que ia fica pronto mais tarde.
- Esse cara não sabia nem mexer no sistema. Você acha mesmo do jeito que ele é enrolado que meu passaporte fica pronto hoje. Fica amanhã. Só pra garantir é bom chegar cedo.
- Eu sei. Ele é bonzinho, mas muito enrolado.
- Chegaram mais cedo? Que sorte, tinha me esquecido de tirar as impressões digitais.

10 dias
- Bom dia.
- Bom dia, pode se sentar.
- Já consegui o passaporte novo e agora preciso do visto, como faço?
- Tens que ir a fronteira. Pega o carimbo de saída e depois o de entrada na África do Sul. Pega o carimbo de saída da África do Sul e o de entrada de Moçambique.
- Já to indo.

9 dias
- Bom dia.
- Bom dia, pode se sentar.
- Carlos, não funcionou. Perdi o dia inteiro, peguei quatro boleias** e quando cheguei lá não deixaram eu sair de Moçambique. Falaram que eu tinha que passar pela Direção Nacional de Imigração.
- Já imaginava. Há de ir à tarde comigo à imigração. Deve demorar uma semana, processo demorado.

6 dias
- Bom dia.
- Bom dia, trouxestes os documentos?
- Tão todos aqui, você acha que já saí hoje?
- Hoje não há nada a sair. Estamos a espera do recibo do visto. O visto há de ficar pronto em 2 semanas e iremos enviar depois a Bilibiza.
- Mas hoje saí o recibo?
- Levaremos os documentos, depois o diretor vai assinar e mais tarde tenho que pagar. Deve demorar mais uns dois dias.

4 dias
- Bom dia.
- Então Carlos, é hoje?
- Não deu tempo de pagar ainda. Estou a ir para Matola*** e amanhã resolveremos o recibo e a passagem a Bilibiza.
- Sobre isso, quero ir na segunda já que é necessário comprar com 3 dias de antecedência para ter o valor promocional. Isso que a Elea me contou...

3 dias
- Oi Carlos, estavamos te esperando. Conseguiu?
- Tivemos um problema e só estará pronto daqui a duas semanas....
- ...
- ...
- Mas o Gabriel me disse que você falo que hoje ia tá pronto? Não tem nada mesmo que de pra fazer?????
- Hahaha é brincadeira. Está tudo pronto. Aqui estão suas passagens e estes são os documentos para viagem. Você ficou sério, mas ela.... tinha que ver a cara.... ahahaha
- ...

1 dia
- Acorda! Anda Bocó! Vai ficar orgulhosa da sua namorada!
- Hunm? Que..... foi?
- Falei com o Nicolau e ele me deu o telefone pra ligar pro Hasira. Ele que é o nosso project leader**** e segunda vão buscar a gente no aeroporto. A gente não tem que se preocupar em pegar mais nenhuma chapa***** ou boleia.

Hoje pela manhã
Email:
"oi gabriel

encontrei o teu passaporte.podes me contactar no nr.0027132328556 ou
brigida@intercape.co


fik bem

Brigida"



*Mochimbombo é o transporte públido em Moçambique utilizado para distâncias mais longas. É um ônibus muito velho.
**Boleia significa carona.
*** Cidade próxima a Maputo onde está localizada a Departamento Regional de Imigração.
**** Project Leader é o responsável pelo voluntário no projeto me que o voluntário trabalha. Nosso chefe que ainda não havíamos contactado.
*****Chapa é o transporte público em Mocambique. Lembra a lotação

quinta-feira, 4 de março de 2010

Santa Paciência

Preguiça de escrever. Muita preguiça de escrever, preguiça de qualquer coisa. Todo dia é a mesma coisa, ou quase. Acordo por volta das oito da manhã graças ao calor insuportável, levanto, troco de roupa, vou ao banheiro e volto pra vê se a Elea já acordo. Depois espero e espero até ela acordar. Quando ela acorda partimos pra nossa primeira ida às barraquinhas da rua da frente. Compramos nosso "matabicho", bom e velho café da manhã, a base de pão e badia, a prima bastarda do brasileiro bolinho-de-chuva. Voltamos e esperamos. Saímos e comemos. Voltamos e esperamos. Entramos na internet e advinha? Esperamos e depois comemos (não necessariamente nessa ordem).

Pra não dizer que caímos em uma rotina, geralmente fazemos programas alternativos como resolver os problemas em relação ao visto, passagem para Bilibiza e passaporte (das três a primeira ainda está pendente, a segunda bem encaminha e a terceira resolvida).


Outra atividade que venho praticando religiosamente às 16 horas é jogar futebol com os garotos da comunidade. Jogo de várzea, mas várzea mesmo. O campo é um terrão e os jogadores são umas figuras, praticamente folclóricos. Na ponta temos o jovem White (os pais devem ter um excelente senso de humor) e no banco o jovem Artrites. Enfim, da pra imaginar o resto. No campo quando fazem gol comemoram junto à banderinha, tiram a camisa ou limpam os pés descalços. Mas, o que chama a atenção é o bendito fôlego dessa gente. Correm muito. Não surpreende ter sempre um Paul Tergat da vida levando a São Silvestre.



Essa é a uma hora e meia do dia que considero meu momento "Esporte Espetacular". Sabe aquelas matérias domingo de manhã em que o Regis Resing vai pra um lugar muito distante e mostra uma galera muito X jogando bola e sendo feliz numa situação pra lá de desgraçada? Então, é mais ou menos isso. Sem falar naquela história do "futebol como linguagem universal" ou "todos dentro do campo são iguais" e assim vai.

Depois é a mesma coisa de sempre, nós voltamos e esperamos....

quarta-feira, 3 de março de 2010

Primeiras saudades

Ainda inconsciente, presa naquele mundo que fica perdido entre o sono, o sonho e o despertar, ouvi o barulho da chuva lá fora. Era reconfortante sentir a brisa entrando no quarto pela janela aberta, a brisa que refrescava com a chuva fina e fraca a cair.

No escuro dos olhos fechados, chegavam os ruídos de gente conversando, os vestígios de uma conversa que se passava a alguns metros de mim. Sem entender o que diziam ou mesmo qual língua usavam, essas pessoas me confortaram por alguns segundos.

Aconteceu que, no limbo existente entre o dormir e o acordar, minha mente masoquista pregou uma peça em si mesma: ela se fez crer que era outro lugar. Outra cama, outro quarto, outra cidade, outro estado, outro país, outro continente. Era minha casa ao meu redor.

Eu estava em casa. Eu estive em casa por alguns breves segundos. Estranhando instintivamente, sem nem saber o motivo, resolvi abrir os olhos para checar.

Então lembrei.

Eu mal cheguei; eu nem cheguei, na verdade. A hora de ir embora está longe.

Virei de lado e abracei meu único elo entre casa e aqui, entre esses dois mundos tão distintos e tão parecidos em alguns momentos. Fechei os olhos e lá fora a conversa se fez nítida. E embalada pelo sotaque não-brasileiro nítido, voltei a dormir.

Obs: Só depois de terminar o texto, percebi que escutava uma música chamada “Not at Home”.

terça-feira, 2 de março de 2010

Sul X Norte, racismo e o problema do lixo

Tem um boteco na esquina antes de chegar à Estrada onde nós sempre compramos refrigerante por 12 meticais – 10 se for produto Pepsi. É o mesmo lugar onde me arranjaram o namorado de cinco meses. O nome é "Vizinho da Coca-Cola", porque estamos do lado da fábrica da Coca-Cola aqui. Sempre é esse nosso ponto de referência.

E lá fomos nós ontem de novo devolver as garrafas de vidro antes de ir comprar a janta. E nossa amiga de sempre, que é mãe do bebê e cujo nome até agora estou para descobrir, estava especialmente empolgada e falando pelos cotovelos.

Primeiro, ela reparou nos meus cabelos compridos porque estavam molhados. “Por que você não vende? Dá pra mim! Você pode ganhar muito dinheiro”. Respondi que gostava muito deles pra isso e que eles ainda não estavam grandes o suficiente de qualquer forma. “Mas cabelo brasileiro dá muito dinheiro porque fica bonito, natural. Tem cabelo de japonês, de chinês, de coreano, de indiano. O de brasileiro vale mais”.

Cortamos o assunto e pedimos logo a Pepsi. “Vocês também estão a ir embora? Seus amigos disseram que vão amanhã. Para onde vocês vão?”. Cabo Delgado. Bem no Norte. Bilibiza, não fica nem em Pemba, a capital. “Ahh, pois vocês vão encontrar muitos negros. Mas negros, NEGROS, mais pretos que eu! Tenho pena de vocês, sinto muito mesmo. Eu sou clarinha, você dá pra ver, mas lá todo mundo é muito escuro, tem orelha furada, nariz furado, tudo!”. Detalhe: ela mesma já é de um tom de pele muito mais escuro do que aquele que se costuma ver no Brasil.

Foi estranho ver uma negra moçambicana falando dessa forma sobre os conterrâneos da mesma cor. Pensei que pudesse até ser uma manifestação da rivalidade que existe entre o sul e o norte. O sul, mais perto da África do Sul, berço da capital Maputo, é bem mais desenvolvido do que o norte, possui mais oportunidades de trabalho e melhores condições de vida em geral – ainda que existam muitas favelas, muitas vias não pavimentadas e faltam muitas coisas básicas para uma cidade grande, como o mínimo de transporte público.

“Lá no norte não tem nada. O povo vem tudo pra cá, porque aqui tem emprego, tem mais coisas, o custo não é tão alto”. Por motivos óbvios, me lembrei do fluxo de nordestinos rumos a São Paulo – e também da tendência inversa que vem sendo observada nos últimos tempos. Me perguntei quantos anos mais vai demorar até a mesma coisa acontecer por aqui.

“Aqui seus refrescos” e foi colocar as garrafas numa sacola. “Não precisa, não”, falei. E vendo que ela me olhava como se eu fosse louca, expliquei: “Faz mal para o meio ambiente. Estamos tentando usar menos sacolas, é melhor. O plásticos suja, polui e faz mal pros animais”. A expressão no rosto dela continuou. “Vocês estão malucos! Compramos os sacos para isso, há de pegar! Vocês vão para longe, hão de levar a sacola ou pelo menos colocar nessa outra que vocês já tem. Não acredito nessa teoria maluca de vocês, não”.

Obedecemos a sugestão, então, já desistindo de explicar sobre o problema do lixo, da contaminação do solo, dos rios e dos mares, sobre a falta de sustentabilidade das ações humanas, sobre os animais sofrendo, o desmatamento, a falta de espaço para todas as tralhas que jogamos fora, etc, etc, etc. Mas , chegando em casa, depois de andar os longos 300 metros que ela disse que eram longe, preparei um curso sobre isso. Se não aqui, em Bilibiza vão ter que me escutar.